Correr devagar para correr rápido


Como mencionado em outros artigos da DOPA, o treinamento adequado para corrida dever ser feito em ciclos e fases, que incluem treinos de maior e de menor intensidade. No entanto, as proporções de tempo de treino em diferentes zonas de esforço não devem ser iguais. Estudos apontam que 80% do tempo correndo deve ser feito em baixa intensidade, ou “devagar”, dentro da zona 2 e 3 em uma escala de percepção de esforço relativo (RPE) .

 

Por que correr “devagar”?

Trabalhos de intensidade moderada e alta realizados de forma muito frequente causam níveis de estresse elevados no corpo, de modo a comprometer a recuperação. Isso não apenas aumenta o risco de lesão, mas significa que você entra na próxima sessão de alta intensidade incapaz de desempenhar o seu melhor devido à fadiga, tornando essas sessões menos eficazes.

"De nossas pesquisas, está claro que atletas de elite treinam cerca de 80% do tempo em uma intensidade que chamaríamos de baixa, e apenas 20% do tempo treinando intensamente", diz o Dr. Stephen Seiler, da Universidade de Agder, Noruega, um dos principais fisiologistas do exercício do mundo.

Corridas leves treinam os sistemas cardíaco e respiratório para trabalharem de forma mais eficiente, permitindo que você corra com menos esforço durante corridas de alta intensidade, além de treinarem suas fibras musculares de contração lenta promovendo adaptações que nos tornam melhores em corridas de resistência.

Ademais, a corrida leve tem um importante papel no fortalecimento dos ligamentos, tendões, ossos e articulações.

 

De onde vem essa metodologia?

Essa teoria de treino é resultado de uma ampla pesquisa sobre corrida, liderada pelo fisiologista americano Stephen Seiler no início dos anos 2000, e se baseia em uma metodologia de treinos focada principalmente em exercícios de baixa intensidade.

A epifania de Seiler sobre resistência surgiu ao analisar uma vasta gama de estudos sobre a intensidade e duração dos treinos. Desde então, pesquisas adicionais por cientistas do esporte, como Veronique Billat, Augusto Zapico e Jonathan Esteve-Lanao, confirmaram a teoria de Seiler de que a proporção 80/20 – onde 80% dos treinos são de baixa intensidade e 20% de alta intensidade – é o “santo graal” da aptidão na corrida.

“Muitos corredores amadores acham que devem se esforçar ao máximo em todos os treinos, então acabam focando muito na área de limiar”, diz Seiler. “Eles melhoram inicialmente, mas depois estagnam. O problema é que ficam muito fatigados para realizar sessões de alta intensidade".

A proporção de treinos de baixa versus alta intensidade pode variar conforme a fase de preparação em que o atleta se encontra para um objetivo específico, como uma prova de corrida. Na última fase, tomando como referência a fórmula proposta por Jack Daniels, que discutimos no Artigo #1, é possível que o mix de treinos se aproxime de 90% de baixa intensidade e 10% de alta intensidade, por exemplo.

 

O método 80/20

Reiterando, o ‘80’ em 80/20 refere-se a 80% do tempo de treino semanal, que deve ser em um ritmo confortável – devagar o suficiente para que você possa manter uma conversa enquanto se move.

Ou seja, em uma escala de 1 a 10, onde 1 é o esforço mínimo e 10 é o máximo, a zona de baixa intensidade geralmente se situa entre 2 e 3, com frequência cardíaca durante esses treinos na casa de 60-70% da frequência cardíaca máxima. Esses treinos de baixa intensidade acabam sendo realizados a cerca de 50-65% do seu VO2 máximo, que é considerado um nível de esforço que pode ser mantido por períodos prolongados e é ideal para melhorar a capacidade aeróbica.

Os 80% fáceis do seu treino semanal também podem incluir exercícios de menor intensidade, como ciclismo leve ou uso do elíptico, utilizados muitas vezes quando o corredor está se recuperando de uma lesão ou quer variar um pouco os estímulos.

Os 20% restantes da quilometragem semanal devem ser completados em uma intensidade mais alta, através de trabalho de velocidade e treinos intervalados. Esses treinos envolvem esforços rápidos e explosivos que elevam a frequência cardíaca.

Em uma escala de 1 a 10, a zona de alta intensidade geralmente está entre 7 e 9. Durante esses exercícios, a respiração será forte, e não será possível manter uma conversa completa enquanto se corre. A frequência cardíaca durante esses treinos deve estar entre 80-90% da frequência cardíaca máxima.

Esse nível de intensidade é desafiador e visa melhorar tanto a capacidade aeróbica quanto a anaeróbica. Esses treinos são realizados a cerca de 90-100% do VO2 máximo, empurrando o corpo próximo de seu limite fisiológico e contribuindo para ganhos significativos no desempenho.

 

Como isso difere das crenças populares e o impacto da mudança para o método 80/20

Estudos indicam que corredores amadores tendem naturalmente a distribuir seus treinos em uma proporção de 50% em intensidade moderada a alta e 50% em intensidade baixa. Essa divisão ocorre muitas vezes porque esses corredores acreditam que precisam se esforçar mais para ver melhorias, o que os leva a manter um ritmo mais alto do que o ideal em treinos que deveriam ser de recuperação ou baixa intensidade.

Em uma pesquisa liderada por Jonathan Esteve-Lanao, pesquisador e treinador de corrida espanhol, foram investigados os impactos de rotinas de treinos mais intensas e menos intensas em corredores amadores. Ele dividiu os participantes em dois grupos, cada um seguindo protocolos de treinamento com diferentes níveis de exigência, e obteve conclusões interessantes.

Um grupo seguiu um plano de treinamento com uma distribuição mais tradicional, com cerca de 50% dos treinos em intensidade moderada a alta e 50% em baixa intensidade. O outro grupo adotou um protocolo com uma abordagem mais polarizada, seguindo a recomendação de 80% dos treinos em baixa intensidade e 20% em alta intensidade, deixando de lado o esforço moderado que se encaixa no meio termo.

O estudo de Jonathan Esteve-Lanao revelou que a metodologia 80/20 trouxe benefícios significativos para os corredores amadores. Especificamente, o grupo que seguiu essa abordagem apresentou uma melhora superior na performance de corrida, especialmente em tempos de 10K, quando comparado ao grupo que treinou na proporção 50/50.

Os resultados mostraram que o grupo 80/20 conseguiu melhorar seus tempos de 10K em cerca de 5%, enquanto o grupo 50/50 teve uma melhora de aproximadamente 3,5%. Essa diferença pode parecer pequena pela ordem de grandeza dos números, mas significa que o grupo que seguiu o método 80/20 conseguiu uma melhora na performance 42% maior do que o grupo que seguiu o método 50/50.

Além disso, o grupo 80/20 demonstrou melhor recuperação entre as sessões de treino e um menor risco de lesão. Isso se deve à menor carga de esforço acumulado em alta intensidade, permitindo que os corredores recuperassem mais rapidamente e treinassem de forma mais consistente ao longo do tempo.

 

Como um dos maiores corredores de todos os tempos aplicou o método 80/20 e conquistou o recorde mundial

Eliud Kipchoge, o renomado corredor queniano de longa distância, é um exemplo notável de como a metodologia de treino 80/20 pode levar ao sucesso absoluto. Em sua busca pelo recorde mundial da maratona, Kipchoge, sob a orientação de seu mentor e treinador Patrick Sang, seguiu rigorosamente um programa de treinamento estruturado em torno desta metodologia.

Seu treinamento incluía um alto volume de corrida, com sessões na pista para desenvolver velocidade e exercícios específicos para fortalecer o core. Ao longo do treinamento, Kipchoge e seu treinador aperfeiçoaram o método 80/20 para as necessidades específicas do corredor.

Suas corridas mais longas variavam entre 30 e 40 km, que somadas a outras corridas mais curtas chegavam aos 220 km semanais de treino para o crredor, com apenas 15-20% desse tempo dedicado a treinos intensos. De forma mais detalhada:

  • 82-84% em intensidade leve
  • 9-10% em intensidade moderada
  • 7-8% em intensidade alta

Os treinos em intensidade leve eram a aproximadamente 4:30 a 5:00 por quilômetro, bem abaixo do ritmo de competição, o que permitia a máxima recuperação de Kipchoge para as sessões de intensidade mais alta. As sessões de alta intensidade eram realizadas apenas duas vezes por semana: uma sessão de pista nas terças-feiras e uma sessão de fartlek aos sábados. Sabemos também, que Kipchoge realizava pelo menos mais uma sessão de fatlek por semana, em ritmo mais lento.

Em 12 de outubro de 2019, Eliud Kipchoge fez história ao quebrar o recorde mundial da maratona com um tempo de 2 horas, 1 minuto e 39 segundos durante o Maratona de Berlim depois de aplicar com perfeição o método 80/20. Na competição, ele superou grandes adversários como Wilson Kipsang, ex-recordista mundial, e Dennis Kipruto, além de outros corredores de elite. Esse feito não apenas solidificou sua posição como um dos maiores maratonistas de todos os tempos, mas também evidenciou a eficácia de seu método de treinamento e sua dedicação inabalável ao esporte.

 

Referências

  1. Seiler, S., & Kjerland, G. Ø. (2006). Quantifying training intensity distribution in elite endurance athletes: Is there evidence for an “optimal” distribution? Scandinavian Journal of Medicine & Science in Sports, 16(1), 49-56.
  2. Esteve-Lanao, J., Foster, C., Seiler, S., & Lucia, A. (2007). Impact of training intensity distribution on performance in endurance athletes. Journal of Strength and Conditioning Research, 21(3), 943-949.
  3. Fitzgerald, M. (2014). 80/20 Running: Run Stronger and Race Faster by Training Slower. New York: Plume.
  4. Stöggl, T., & Sperlich, B. (2015). The training intensity distribution among well-trained and elite endurance athletes. Frontiers in Physiology, 6, 295.
  5. Billat, V. L., Flechet, B., Petit, B., Muriaux, G., & Koralsztein, J. P. (1999). Interval training at VO2max: effects on aerobic performance and overtraining markers. Medicine and Science in Sports and Exercise, 31(1), 156-163.
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